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No dia 23 de outubro foi realizada Audiência Pública “Debate sobre a Saúde Mental” na Câmara Legislativa do Distrito Federal (DF). A audiência foi uma ação da Frente Parlamentar em Defesa da Atenção à Saúde Mental Antimanicomial e Integradora, coordenada pelo Deputado Distrital Gabriel Magno (PT), em alusão ao Dia Mundial da Saúde Mental, celebrado anualmente em 10 de outubro.
A atividade contou com a participação de usuárias, usuários, familiares, profissionais, gestores, pesquisadores e demais militantes do campo da saúde mental, álcool e outras drogas do DF.
Um dos pontos mais debatidos foi a situação das Comunidades Terapêuticas (CTs) no DF e como elas configuram um ataque à Reforma Psiquiátrica brasileira e ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Por isso, um plano de desinstitucionalização no DF deve se atentar para três pontos elementares:
(a) fechamento da Ala de Tratamento Psiquiátrico (ATP), uma espécie de manicômio judiciário na forma de ala, que fica na Penitenciária Feminina, a Colmeia;
(b) o fechamento do manicômio público e ilegal do DF, o Hospital São Vicente de Paulo;
e (c) o fim do repasse público às CTs e fechamento de todas as CTs. Todo este processo deve ser construído com usuários, familiares, profissionais da saúde mental, de maneira participativa, numa perspectiva de reorientação de profissionais, verbas e serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Sistema Único de Saúde (SUS) e outros setores, com a construção de outros serviços, concursos públicos para mais profissionais e melhores garantias de trabalho, dentre outras iniciativas.
Como vimos debatendo em produções acadêmicas e aqui, na nossa coluna, as CTs são um dos principais entraves à Reforma Psiquiátrica brasileira e, nisso, no DF. No geral, são uma mistura de manicômios, prisões, igrejas e senzalas – por conta da prática de laborterapia, que significa, concretamente, trabalho não-pago, trabalho análogo à escravidão, sobretudo de pessoas negras e pobres.
Só em 2023 no Distrito Federal e entorno, temos denúncias vinculadas a várias CTs, inclusive a Salve a Si, uma das mais importantes (a segunda que em quantidade de verba pública do GDF e do Governo Federal), cujo diretor exercia importantes cargos de coordenação em entidades regionais e nacionais representativas das próprias CTs.
Fugindo do controle social
O grosso do financiamento público das CTs vem propositalmente por fora do SUS, para fugir de suas instâncias de controle e participação social, como os Conselhos de Saúde e Conferências de Saúde. Aliás, tudo isso é feito contrariamente a uma série de determinações e orientações destes mecanismos – e de vários outros.
De acordo com pesquisa desenvolvida pelo nosso grupo, com base no Portal da Transparência e demais fontes estatais – do DF inclusas – só entre 2019 e 2022, ou seja, durante o governo Bolsonaro e a primeira gestão do governo Ibaneis, tivemos cerca de R$ 28 milhões repassados às CTs do DF apenas pelo extinto Ministério da Cidadania e pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), aproximadamente metade de tal valor por cada Ministério.
E no caso do MJSP, a verba vem pelo Fundo Nacional Antidrogas (FUNAD) que, no DF, se transforma no Fundo Antidrogas do Distrito Federal (FUNPAD), gerenciado pelo Conselho de Política sobre Drogas do DF (CONEN), vinculado à Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania do DF (SEJUS).
Cabe, então, repetirmos, que toda a verba gerenciada pelo CONEN tem sido direcionada às CTs.
Em resposta a um requerimento (nº 783/2023) do deputado Gabriel Magno, numa iniciativa da Frente Parlamentar em Defesa da Atenção à Saúde Mental Antimanicomial e Integradora, o CONEN informou
“que não houver [sic] repasse através do Fundo Antidrogas do Distrito Federal para os serviços de saúde mental da SES, como os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS, em especial os CAPSad, leitos de saúde mental nos hospitais gerais, Unidades de Acolhimento, dentre outros, os quais atuam em conformidade com os parâmetros do Sistema Único de Saúde (SUS), se limitando apenas aos repasses [às CTs] informados acima”
Mesmo sendo passível de várias críticas, a Política Distrital sobre Drogas, a qual o CONEN se submete e deve contribuir para o seu desenvolvimento, coloca como diretrizes “nas Áreas de Tratamento, Recuperação e Reinserção Social dos usuários ou dependentes de álcool e ou outras drogas”:
X - estimular a criação de Centros de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas - CAPS-AD nas regiões administrativas do Distrito Federal, inclusive para atendimento a crianças e adolescentes;
XI - definir políticas de fiscalização do cumprimento dos protocolos de tratamento ao usuário de álcool ou outras drogas na rede de assistência do Sistema Único de Saúde – SUS”
Novamente, há muito o que se criticado em tal política, sobretudo o quanto ela é pautada em moralismos, visões irrealistas e reproduz uma lógica proibicionista que só tem contribuído, por meio da utilização das drogas, para mais punição, encarceramento e mortes (sobretudo da população negra, pobre e periférica).
CONEN enfraquece o SUS
Contudo, mesmo nesta lógica, tal Política concebe a centralidade do SUS e da organização da assistência nele, privilegiando serviços como os CAPS. Logo, o CONEN, como órgão central do “Sistema Distrital de Política sobre Drogas” e da Política sobre Drogas do DF, tem ido na contramão da própria Política.
Melhor dizendo, tem atuado para enfraquecê-la, a partir do momento que o financiamento exclusivo às CTs ataca, deslegitima e enfraquece alternativas antagônicas a elas, de caráter não-manicomial, públicas, que não violentam ou desrespeitam direitos, como os CAPSad – e outras, como as Unidades de Acolhimento, os leitos em hospitais gerais, entre outros.
Por mais que o CONEN possa argumentar que existe representação da Secretaria da Saúde em sua composição, ela é apenas uma, sendo o restante: sete representantes de outras secretarias e da Polícia Civil do DF; um representante do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios; dois representantes dos centros de recuperação, comunidades terapêuticas e similares, não governamentais, sediados no Distrito Federal; um representante da OAB; um representante da Associação Médica de Brasília; um representante do Conselho Regional de Farmácia do Distrito Federal; um representante do Conselho Regional de Psicologia - 1ª Região; um representante do Conselho Regional de Serviço Social - 8ª Região; três representantes da sociedade civil.
:: Novas denúncias de violências escancaram irregularidades nas comunidades terapêuticas do DF ::
Ou seja, é um conselho predominantemente do GDF, significando que a posição do GDF prevalece independentemente de oposições a ela. Não existe paridade. Logo, não é um conselho gestor nos marcos da participação social e controle social. É mais repartição do GDF que, concretamente, tem significado ser um conselho das e para as CTs.
O CONEN pode argumentar que não há, “pois que se falar em composição de ‘50% de representantes de usuários e/ou da sociedade civil’, eis que o rol [que o Decreto nº 32.108/2010] é taxativo e determina desde já quais áreas terão representantes no conselho de políticas públicas”. No entanto, se ele não é paritário, se é basicamente um braço das CTs via GDF, se não há pluralidade nas decisões e fomentos, já que toda a sua verba vai para as CTs, sugerimos que ele mude seu nome, para algo que seja realmente representativo do que ele tem feito e sido.
Inclusive, ele não tem respeitado as suas próprias competências – novamente, que são bastante criticáveis. Só para ficar em um exemplo, cabe a ele: “IX - propor legislação, bem como normatizar, a área de prevenção, tratamento, recuperação e redução de danos”. Como bem se sabe, as CTs se fundamentam num modelo de abstinência como único horizonte do tratamento, desconsiderando (indo contra) a Redução de Danos.
Inclusive, é extremamente problemático e preocupante ter espaço para um tipo de serviço – e, pior, um serviço como as CTs – e, mais, com duas vagas, mais que cada secretaria, por exemplo.
Ora, não seria pertinente, então, termos representantes de CAPSad? De Unidades de Acolhimento? Estas, e outras, são entidades públicas, não manicomiais, que prestam assistência a pessoas com problemas associados ao consumo de drogas.
Por que o privilégio – e mais, a exclusividade – às CTs? Ora, a resposta a esta pergunta está na própria dinâmica e função social que o CONEN tem cumprido: repassar verba pública para as CTs; ser um conselho das e para as CTs.
:: Quem se salva das Comunidades Terapêuticas? ::
Recentemente, no dia 04 de outubro, foram publicadas duas Portarias, nº 274 e nº 275, em que só o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDASFCF) liberava o repasse de verbas públicas no valor de R$ 10.086.805,00 para as CTs (de um total de R$ 12.561.407).
Desse montante, para ao DF, há na Portaria 275, duas rubricas no valor de R$ 382.500,00 cada. Caso não tenha sido um erro de repetição, são R$ 767 mil só para CTs. Na Portaria 274, o cenário é ainda mais alarmante, com as quantias passando da casa do milhão. Isso sem contar com o dinheiro vindo do MJSP, via FUNAD.
Há em vistas, portanto, um aporte milionário de verbas públicas que serão geridas pelo CONEN; que deveriam ir para serviços de tratamento em álcool e outras drogas; tratamento mesmo, e não violência repaginada e ocultada sob retóricas de suposto tratamento. Recursos que deveriam ir para instituições públicas, afinal, são verbas públicas; que deveriam ir para instituições que não são religiosas, afinal, são verbas estatais, de um Estado laico.
Grosso modo, tais verbas deveriam ir para o SUS, para os serviços da Reforma Psiquiátrica, como os CAPSad, Unidades de Acolhimento, leitos em hospitais gerais etc., e não serem usados contra eles.
Eis, portanto, uma boa oportunidade para o CONEN fazer sua devida autocrítica, se repensar, repensar a sua atuação e deixar de ser um conselho para e das CTs e, portanto, um conselho contra o SUS, contra a Reforma Psiquiátrica.
Pelo fim das Comunidades Terapêuticas!
Por um DF sem manicômios!
Por uma sociedade sem manicômios!
:: Leia outros textos desta coluna aqui ::
*Pedro Costa é membro do Grupo Saúde Mental de Militância do Distrito Federal UnB.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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