Ora invisibilizados, ora perseguidos, os terreiros de religiões de matriz afro-brasileira resistem no Distrito Federal e Entorno e dão continuidade ao trabalho secular de acolhimento, caridade e cura.
Hoje, 21 de janeiro, é celebrado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. O Brasil de Fato DF conversou com lideranças de terreiros a respeito da importância da data.
Resistência
Mãe Baiana, Yalorisá do Ylê Axé Oyá Bagan, assiste em seu terreiro pessoas de várias regiões, como Itapoã, de Paranoá, de Varjão, de São Sebastião.
“Pessoas negras, pessoas pobres, pessoas que batem na porta precisando de um prato de comida. Agora na pandemia, o terreiro fez esse papel de levar a cesta básica, de orientar as pessoas, principalmente a saúde mental delas. Mesmo sem poder vir ao terreiro, elas foram assistidas através do WhatsApp. As pessoas ligavam e a gente atendia. Temos também um atendimento semanal com o caboclo dentro do terreiro, que mexe com erva, com folha, que dá passe, dá defumação”, conta a yalorisá.
Para ela, que teve seu terreiro destruído por um incêndio em 2015, é importante chamar atenção para essa data, de forma que seja dada continuidade à luta.
“É de suma importância a gente falar dessa data, não porque a gente se alegra de saber que tem um dia de combate à intolerância religiosa, mas a gente se fortalece ao lembrar que ela foi criada, por um decreto do presidente Luíz Inácio Lula da Silva, para nos proteger”, explica a yalorisá.
Na visão de Mãe Dora de Oyá, Yalorisá do Ilê Axé Tojú Labá - DF, o momento atual é de ‘diálogo’.
“Nessa nova configuração política do país, principalmente com a criação do Ministério da Igualdade Racial e com a tipificação de injúria racial como crime de racismo, fica mais fácil o diálogo. Acho que órgãos governamentais, junto com a sociedade afro, precisam fazer uma campanha de conscientização de que o Estado é laico, que a nossa religião é como qualquer outra, claro que com suas peculiaridades. É necessário entender que somos uma das bases da cultura brasileira, na vestimenta, na culinária, na música”, evidencia Mãe Dora.
Terreiros no DF
Segundo mapeamento realizado em 2018 pela Fundação Palmares em parceria com o Projeto Geoafro da Universidade de Brasília (UnB), o DF tem 330 centros de religiões de matriz africana.
A maioria é localizada na Ceilândia, onde há 43, seguida por Planaltina, com 25 terreiros. O levantamento também revelou que 33% das casas de terreiro professam o candomblé, 57% a umbanda e cerca de 9% reúnem as duas vertentes.
O projeto foi paralisado e não existem dados mais atuais do mapeamento. Além disso, o total registrado em 2018 ficou abaixo do esperado, já que muitos terreiros se deslocaram para regiões do Entorno, motivados pela especulação imobiliária e pela intolerância religiosa.
Intolerância Religiosa ou Racismo Religioso?
A intolerância religiosa é caracterizada por atitudes discriminatórias direcionadas à determinada religiosidade. As religiões de matriz africana são as mais acometidas por essa prática criminosa. Dados do Ministério dos Direitos Humanos apontam que só em 2022 foram 1.200 ataques.
Lideranças religiosas e estudiosos reconhecem a importância da criminalização da intolerância religiosa, mas argumentam que este termo não é o mais adequado para descrever a prática quando o crime é contra religiões de origem africana.
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O babalorixá e doutor em Linguística pela Universidade de São Paulo (USP) Sidnei Nogueira explica, em seu livro “Intolerância Religiosa”, que há uma “especificidade” na “violência perpetrada contra as religiões de matriz africana, que tem no racismo seu sustentáculo de legitimação e ação destruidora”. Por isso, nestes casos, o termo mais compatível é “racismo religioso”.
“É no racismo que está o componente nuclear das diversas formas de violência contra as Comunidades Tradicionais de Terreiro (CTTro). O racismo evidencia igualmente como as agressões não se circunscrevem a um caráter puramente religioso, mas a uma dinâmica civilizatória repleta de valores, saberes, filosofias, sistemas cosmológicos, em suma, modos de viver e existir negroafricano amalgamados nas CTTro”, evidencia o babalorixá.
O racismo religioso praticado contra as religiões afro-brasileiras não incide somente sobre as pessoas envolvidas em um episódio específico de violência, mas sobre todo o conjunto de práticas, crenças e ritos - é direcionado a toda uma cosmovisão, um jeito preto de ser e estar no mundo.
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“É provável que o termo “intolerância” seja mais aceito por conta dos mitos da democracia racial e da democracia religiosa (laicidade). No Brasil tudo o que colocar o povo brasileiro em uma posição cordial será mais aceito do que qualquer noção que confrontá-lo ou que pode colocá-lo na posição de extremista, excludente e violento”, explica Sidnei Nogueira.
Mãe Dora de Oyá, também discorda do uso do termo “intolerância religiosa”. Segundo ela, este é um conceito “ultrapassado”.
“Hoje, nós vivemos um terrorismo religioso. Intolerância é quando você fala mal, vira a cara, é tipo ‘não conheço, e não gosto’. O terrorismo acontece quando você invade um terreiro, quebra as coisas, põe fogo, apedreja seus membros, expulsa sacerdotes mediante arma de fogo. Então, para esses casos, é terrorismo religioso”, explica a yalorisá.
Denúncias
De acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF), entre janeiro e novembro de 2022, foram registradas 22 ocorrências de discriminação religiosa no DF. O órgão não informou quantos desses crimes foram cometidos contra religiões de matriz afro-brasileira.
Em 2015, o terreiro de Mãe Baiana foi destruído por um incêndio. Segundo a yalorisá, a polícia, inicialmente, não quis reconhecer o ataque como um caso de racismo religioso. Alegavam que havia sido um curto circuito.
“Não foi um curto. Nem luz direito a gente tinha nessa época aqui nem geladeira a gente não tinha, não tinha como puxar a energia para ter um curto aqui dentro, não existe essa possibilidade”, conta a yalorisá.
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No mesmo ano, vários outros terreiros foram acometidos pela mesma violência. Dois dias após o episódio no Ylê Axé Oyá Bagan, atearam fogo na imagem de Oxalá localizada na Prainha.
Após intensa mobilização das comunidades de terreiro no DF, o Governo do Distrito Federal decidiu criar uma delegacia especializada para atender os crimes de intolerância religiosa. Em 2016, foi inaugurada a Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual ou contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin).
Mãe Baiana faz um balanço positivo do trabalho da Decrin desde sua criação.
“Na delegacia temos duas delegadas super responsáveis, que sabem combater. Quando a gente chega lá com qualquer notícia crime, elas vão em cima. Elas têm muita responsabilidade. É fora do comum. Então, a delegacia tem dado resultado sim, tem inibido as pessoas de cometer crime de intolerância religiosa. E agora, depois do novo decreto, eu creio que vai melhorar ainda mais”, avalia a yalorisá.
O decreto a que a líder religiosa se refere é a lei sancionada no dia 11 de janeiro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que equipara a injúria racial ao crime de racismo. Até o início deste ano, a pena para quem praticasse intolerância religiosa era de 1 a 3 anos de reclusão. Com o decreto, a pena passou a ser de 2 a 5 anos, além de ser considerado um crime imprescritível e inafiançável.
Um crime imprescritível pode ser julgado a qualquer momento, independentemente da data em que foi cometido. Já a inafiançabilidade significa que o preso não tem direito a pagar fiança para ser liberado.
A Decrin está localizada no Departamento de Polícia Especializada (DPE) — Complexo da Polícia Civil, ao lado do Parque da Cidade. O atendimento acontece de segunda a sexta-feira, das 12 às 19h.
Encontro
Acontece neste domingo (22), às 10h, no terreito Ylê Axé Oyá Bagan, um encontro alusivo ao Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa. Além do ato interreligioso, haverá o lançamento da Rádio Povo de Axé.
Com informações do Brasil de Fato
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